Festa do Jazz
O futuro esteve aqui
«Alumiar é lutar», escreveu Eça de Queirós no seu tempo e podemos repetir a respeito do que se ouviu na edição da Festa do Jazz que decorreu no passado fim de semana. Uma edição que se abriu não só ao presente do jazz português como ao futuro desta música que se vai anunciando por meio de novos – e surpreendentes - projetos.
Consolidada a maioridade, a Festa do Jazz chegou à sua 19.ª edição, organizada pela Associação Sons da Lusofonia (ASL), sob a batuta sempre atenta e combativa de Carlos Martins. O evento, que em boa hora regressou ao formato com público presencial, realizou-se no fim de semana de 18 e 19 de dezembro, em três espaços localizados à beira Tejo: o Centro Cultural de Belém (CCB), onde tiveram lugar os concertos, o Espaço Espelho d´Água (palco dos debates, do Encontro Nacional de Escolas de Jazz e dos “showcases” das escolas superiores) e a Livraria Ler Devagar (Lx Factory), local para as “jam sessions”.
A jazz.pt apenas assistiu aos concertos – dois à tarde e dois à noite, em ambos os dias – num Pequeno Auditório do CCB geralmente bem composto de público – os concertos foram transmitidos em direto pela RTP Palco, parceira na organização, que disponibilizará posteriormente todos os conteúdos na plataforma digital. Como o SARS-CoV-2 e suas variantes tardam em deixar-nos em paz, todos os cuidados de prevenção da saúde pública e individual foram observados: necessidade de apresentação à entrada de certificado digital ou resultado negativo de teste e uso obrigatório de máscara. Sabendo-se que o jazz não se dá bem com egoísmos, negacionismos e outros abomináveis ismos, a civilidade e o respeito imperaram nesta Festa.
Atenta desde o início às problemáticas sociais e de género, a Festa do Jazz contou nesta edição, pela primeira vez, com a colaboração de Beatriz Nunes e Pedro Melo Alves na programação do evento, através da curadoria de um projeto artístico escolhido por cada um, a abrir ambas as tardes. Em notas de apresentação do festival, o diretor artístico referia que chegara o momento «de ir mais longe e chamar outros ouvidos para propor novas músicas e novas tendências porque isso é essencial a qualquer festival que queira manter-se “on the edge”.» Uma nova prática que se saúda e pretende ver replicada e estendida em futuras edições deste e de outros eventos.
As honras de abertura da Festa couberam ao (importante) debate sobre o estado do “Ensino do Jazz” em Portugal, para o qual estavam anunciadas as presenças de Carlos Mendes (guitarrista e diretor do Curso Profissional de Instrumentista de Jazz da Art’J – Jobra) e de João Paulo Esteves da Silva (insigne pianista e docente na Escola Superior de Música de Lisboa), com moderação de Carlos Martins. No dia seguinte, à mesma hora, o tema era a “Portugal Jazz (Rede Portuguesa de Jazz)”, com Massimo Cavalli (contrabaixista e coordenador do curso de Jazz e Música Moderna da Universidade Lusíada de Lisboa), Pedro Guedes (da Orquestra Jazz de Matosinhos) e de novo o diretor artístico do festival a gerir a conversa. Temas candentes do jazz nacional sobre os quais importa refletir de forma ampla e aprofundada com todos os agentes envolvidos: escolas, músicos, programadores e público. Iniciativas louváveis, a que a jazz.pt, infelizmente, não assistiu.
O Encontro Nacional de Escolas de Jazz – pilar distintivo da Festa do Jazz e um dos seus momentos mais aguardados – também regressou este ano e em formato presencial. Agendadas para sábado estavam as apresentações dos combos da Escola de Jazz do Barreiro/José Cardoso Ferreira, da Escola Artística do Conservatório de Música de Coimbra, do Conservatório de Música do Porto e da Escola de Jazz Luiz Villas-Boas do Hot Clube de Portugal. Também o combo da Escola Superior de Música de Lisboa (ESML), sob a direção de Nelson Cascais, estava escalado para mostrar o seu trabalho. Para domingo caberia a vez aos alunos do Curso Profissional de Instrumentista de Jazz da Escola Básica e Secundária da Bemposta e da JAM – Jazz Academy of Music. Das escolas superiores, apresentaram-se os alunos do curso de Jazz e Música Moderna da Universidade Lusíada de Lisboa (ULL), dirigidos por João Barradas, e o ESMAE Jazz Ensemble (da Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo – Porto), dirigido por Pedro Guedes. A simultaneidade destas apresentações com os concertos no CCB não permitiu à jazz.pt assistir às mesmas.
Sábado 18, tarde
No sábado, 18 de dezembro, o primeiro concerto da tarde ficou a cargo de Mariana Dionísio e Leonor Arnaut, a escolha de Beatriz Nunes, depois de escutar a dupla na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa. As duas cantoras aplicam os seus amplos recursos – diria que próximos no plano tímbrico – de modo muito interessante e desafiador de convencionalismos. Duas vozes, sim, mas, surpresa, os primeiros sons que se escutaram foram de percussões. Arnaut e Dionísio aliaram as suas vozes – entendidas como os verdadeiros instrumentos que são – a diversas percussões – de um pequeno sino ao potente gongo, e, não despiciendo, às respirações e silêncios. Em regime declamado ou cantado, ou híbrido, em português ou inglês, o duo transportou-nos por diferentes tempos e geografias, de um teatro renascentista à selva indonésia em poucos instantes. Ou de como duas vozes quase soam como um coro completo. Um projeto deveras interessante, a cuja evolução importa estar atento.
Logo a seguir, subiu ao palco o Bock Ensemble, formação dirigida por um dos nomes mais interessantes da nova geração do jazz nacional, o baterista e compositor Diogo Alexandre. Agregando músicos de diferentes gerações e percursos distintos, a formação tem vindo a crescer de concerto para concerto, e ofereceu ao público presente um dos momentos mais valiosos desta edição da Festa. O que se escutou foi uma música aberta e desafiante, onde coabitam a precisão e o risco, equilibrando de modo notável o rigor das composições com a urgência das improvisações (igualmente válido seria dizer a urgência das composições e o rigor das improvisações), tendo sempre como pedra angular a propulsão multímoda do líder. Quatro peças fizeram a jornada, todas saídas do registo de estreia da formação, acabado de chegar pela mão da JACC Records, que reúne material escrito em 2020 e 2021. Primeiro a demonstração plena da elegância da pena de Alexandre, com “Rationalism” (belo solo de um Tomás Marques em claro processo ascensional), seguindo-se uma mais garrida “Gratification”, introduzida pela guitarra límpida de André Fernandes. Desse monumento melódico que é “Pipe Tree” avultou o lirismo dos duetos entre guitarrista e Paulo Bernardino no clarinete baixo (ouvidos nele!), primeiro, e depois com o sempre competente Óscar Graça ao piano. A fechar, “Here Kumz The Nite” com o vigoroso “tutti” em destaque, dele emanando um flamejante duelo de altos. Muito bom.
Sábado 18, noite
À noite, a função iniciou-se com uma estreia absoluta para estes ouvidos, os ENTER THE sQUIGG, formação que interpreta as composições do guitarrista Mané Fernandes e que se completa com João Barradas no acordeão MIDI, Luca Curcio no contrabaixo e eletrónica e Simon Albertsen na bateria. Resultado de quatro anos de trabalho na Dinamarca, o grupo propõe uma música cosmopolita e fresca, espelho da contemporaneidade, mas percetivelmente ancorada num diversificado conjunto de referências. Fernandes une com propósito o seu guitarrismo fluido e inventivo ao acordeão multidimensional de um sempre influente Barradas, capaz de transportar o som do grupo de uma atmosfera descontraída e soalheira (“Makuma ‘79” trouxe à memória as vocalizações de um Milton Nascimento) para um imaginário sci-fi, passado por passagens marcadas por um “groove” robusto, cortesia de Curcio e Albertsen. Os dados estão lançados e resta agora aguardar pelo disco de estreia do projeto, anunciado para março pela Clean Feed, sempre apostada também em documentar o pelotão da frente do jazz nacional.
Antes do segundo e derradeiro concerto da noite, foram apresentados os Prémios RTP/Festa do Jazz, por Carlos Martins e João Almeida (diretor da Antena 2), atribuídos em cinco diferentes categorias. Os galardoados foram os Garfo (Grupo Revelação), a cantora Nazaré da Silva (Artista Revelação), o decateto Two Maybe More de Pedro Moreira (Grupo do Ano), a trompetista Susana Santos Silva (Artista do Ano, ausente e representada na ocasião por João Pedro Brandão) e o diretor artístico do Guimarães Jazz, Ivo Martins (Prémio Mérito).
Dando continuidade aos Encontros entre músicos iniciados na edição do ano passado, coube desta feita ao guitarrista André Fernandes constituir uma formação expressamente para se apresentar nesta edição da Festa, um quinteto “all-stars” que batizou de FOCA. E que quinteto: para além do próprio Fernandes na guitarra, contou com Mário Laginha ao piano, José Pedro Coelho nos saxofones tenor e soprano, João Hasselberg nas eletrónicas e no baixo elétrico, e João Lopes Pereira na bateria. O grupo ofereceu uma música sóbria e melodicamente requintada, mas sempre espreitando o ensejo para tergiversar. Mestre Laginha voou alto, ladeado pela elegância formal da guitarra de Fernandes e pela fluidez discursiva de Coelho, saxofonista que, independentemente do contexto, é sempre capaz de surpreender. O elemento mais disruptivo da formação terá sido, contudo, João Hasselberg, pela forma inteligente como tornou as suas injeções eletrónicas fundamentais para o som global do grupo. Toda a inventividade rítmica de João Pereira, tanto na potência como no detalhe, foi bem notada. Um final em crescendo, construído à base dos motivos propostos por guitarrista e saxofonista, encerraram da melhor forma a primeira noite.
Domingo 19, tarde
Já no domingo, 19 de dezembro, a jornada de concertos arrancou com o projeto HUH! (uma interjeição, como um susto), a escolha de Pedro Melo Alves, uma novidade em concerto ao vivo para os ouvidos deste escriba. Trata-se do quarteto formado por Bruno Ramos na guitarra e pedais, Guilherme Rodrigues no saxofone alto e objetos, Zé Maria no saxofone alto e o galego Miguel González na bateria e percussões. Sob entusiástico apoio, os quatro músicos surgiram num palco pouco iluminado, em tons de azul, apenas se divisando as respetivas sombras. O som do gongo deu azo a que todos brandissem aquilo que pareceram tubos, criando um efeito de silvo que se adensou e do qual emergiu a dupla de sopros. A guitarra (e os pedais acoplados) de Bruno Ramos (calções a la Terrie Ex e tudo) foram alicerce textural para os jogos de aproximação e distanciamento entre sopros, com González a fornecer nutrido suporte rítmico. Rodrigues e Zé Maria assinaram solos incendiários na tradição do free jazz, sobretudo o primeiro, de clara inspiração brotzmanniana. Uma boa surpresa, veremos o que o futuro reserva a este jovem e promissor quarteto.
Seguiu-se outro dos concertos mais antecipados da Festa, o dos Garfo, quarteto de configuração instrumental clássica – com Bernardo Tinoco (saxofone tenor), João Almeida (trompete), João Fragoso (contrabaixo) e João Sousa (bateria) –, valores seguros da nova geração do jazz nacional e autores de um mui recomendável álbum de estreia na Clean Feed. Altamente preparados e evidenciando já uma maturidade assinalável, todos contribuem no plano composicional e todos se entregam a improvisações livres que expandem a paleta sónica do grupo, a partir das referências clássicas do género. O tom aveludado de Tinoco, a abordagem económica, mas explosiva, de Almeida e a solidez da secção rítmica fazem da música do quarteto um desafio constante, interpelando estereótipos e apontando o futuro. O mais interessante das construções sónicas propostas pela formação acontece não tanto ao nível das articulações entre as duplas de sopros e rítmica, mas no seio de cada um desses núcleos (reforços e contrastes, uníssonos e contrapontos). Fosse na elegância da arquitetura de “Alderpoint”, na refinada parada e resposta de “Quadrado”, na contenção do solo de Fragoso em “Palavras” (acompanhado apenas pelas escovas de Sousa), no travo camerístico de “T” ou na solenidade de “Terminal”, com o contrabaixista a afagar o corpo do seu instrumento, explorando as suas potencialidades sonoras de forma total. Mais do que uma vaga promessa, os Garfo são já uma sólida certeza. Acompanhar o percurso destes músicos é sentir o pulsar do jazz nacional do nosso tempo.
Domingo 19, noite
À noite, um octeto liderado pelo saxofonista, compositor e arranjador César Cardoso revisitou o projeto “Dice of Tenors”, disco de 2020. Arranjos rigorosos e luxuriantes do ponto de vista tímbrico, onde a complexidade harmónica e rítmica acaba por resultar numa música orgânica e vibrante, o que é verdadeiramente notável, provando que há muitas pepitas por garimpar nesse vetusto material. Para tal, em muito contribui a excelência da abordagem dos músicos em presença: desde logo o próprio Cardoso, Luís Cunha (trompete), Tomás Marques (saxofone alto), Gil Silva (trombone), Jeffery Davis (vibrafone), Óscar Graça (piano), Demian Cabaud (contrabaixo) e Pedro Felgar (bateria) – trombonista e baterista em estreia na formação. Com este projeto, o líder faz uma vénia a meia dúzia de saxofonistas tenor que o influenciaram decisivamente ao longo do seu percurso (na ocasião apenas quatro; faltaram à chamada Dexter Gordon e Sonny Rollins). A abrir, uma leitura enérgica de “Along Came Betty”, de Benny Golson, com solos de Davis e Cardoso. Seguiram-se “Giant Steps” de Coltrane, com notável solo de Tomás Marques, o “standard” “Remember” (na versão de Hank Mobley incluída no incontornável “Soul Station”) e “Recorda Me”(sic), original de Joe Henderson que está no alinhamento do álbum “Page”, de 1963. “Agueiro” é uma balada luminosa que encaixou bem neste quadro referencial. Eis a prova de como é possível, e sempre desejável, reinterpretar criativamente clássicos intemporais, transportando-os para uma nova dimensão sonora. Soube muito bem.
Antes do derradeiro concerto foram entregues os Prémios Lurdes Júdice, durante 19 anos vice-presidente da Associação Sons da Lusofonia e prematuramente desaparecida em 2018. Os vencedores foram a Escola Artística do Conservatório de Música de Coimbra (Melhor Combo) e o baterista Filipe Matos (Melhor Instrumentista), da mesma escola. As menções honrosas foram para a Escola de Jazz Luiz Villas-Boas do Hot Clube de Portugal, para o pianista João Ferreira, aluno do Conservatório de Música do Porto, e para Igor Cavaz, saxofonista da Escola Artística do Conservatório de Música de Coimbra. Nas escolas superiores, as menções honrosas prestigiaram a ESMAE, Hugo Lobo (pianista da ESML) e Mariana Froes (cantora da ULL). O júri a quem coube a espinhosa, mas recompensadora tarefa de atribuir os prémios foi este ano constituído pelos músicos Ana Paula Sousa, José Soares e Luís Candeias.
Para o fim, o trio de Sara Serpa, acompanhada por Ingrid Laubrock no saxofone tenor e Demian Cabaud no contrabaixo. A cantora, chegada a Lisboa no próprio dia – tal como a saxofonista –, retomou com Cabaud um projeto interrompido em dezembro de 2019, antes mesmo de a COVID-19 ter virado o mundo deles, e o nosso, de pernas para o ar. Serpa é uma cantora experiente a tirar partido das peculiaridades do seu canto para construir uma música de porcelana, feita de pormenores e subtilezas, num contexto de especial intimidade entre os três vértices desta geometria sonora. O saxofone de Laubrock dançou com a voz e Cabaud esteve exímio, tanto em pizzicato como recorrendo amiúde ao arco. Na memória ficaram as interpretações de peças como “Pássaros” (com as belas palavras de Ruy Belo: «Os pássaros nascem na ponta das árvores / As árvores que eu vejo em vez de fruto dão pássaros»), “Woman” (inspirada nos textos da filósofa e feminista belga Luce Irigaray sobre a invisibilidade da maternidade), “The Future” (partindo das palavras de Virginia Woolf) ou as mais exploratórias “Object” e “Sol Enganador” – todas resgatadas a “Close Up”, magnífico disco de 2018 com Laubrock e Erik Friedlander no violoncelo. “Dark River”, sobre haiku da poeta e ativista afroamericana Sonia Sanchez, com obra reconhecida acerca do trabalho das mulheres negras, foi outro momento especial. A fechar, um arranjo particular de “Primavera”, peça que dá título ao álbum de 2014 em parceria com o guitarrista André Matos. Noite dentro, as “jam sessions” estiveram a cargo dos Mancha no sábado e do Zé Almeida Trio no domingo (a que a jazz.pt não assistiu).
Concluída com sucesso mais uma Festa do Jazz, espera-se que a 20.ª edição – agendada para setembro de 2022 no CCB – continue a demonstrar que o jazz nacional atravessa uma fase de grande fulgor criativo e a rasgar horizontes, provando que no século XXI é tonto cercear, policiar o jazz. O jazz vive e expande-se! A verve de Eça é infalível: «Pensar é sofrer, alumiar é lutar.»