12º Festival Porta-Jazz / Dia 2, 5 de Fevereiro de 2022

12º Festival Porta-Jazz / Dia 2

12.º Festival Porta-Jazz / Dia 2: a questão da voz

texto: Gonçalo Falcão / fotografia: Adriana Melo (Mínima/Porta-Jazz)

O segundo dia do festival era o mais intenso: seis concertos em doses duplas, três deles com cantores. Quando chegámos à parte de trás do palco do Grande Auditório para ouvir um duo de voz e saxofone ainda não sabíamos que estávamos no melhor concerto do dia. A proposta era – por si só – curiosa, mas o resultado superou em muito as nossas expectativas.

Vera Morais (voz) e Hristo Goleminov (saxofone) tocam poesia (quase sempre de William Carlos Williams) de um modo interessantíssimo, encontrando formas de dizer e tocar as palavras, respeitando o sentido dos poemas. “This Is Just To Say”, por exemplo, o poema que encerrou o concerto (e que no ano passado se transformou num “meme” muito popular; as obras literárias não têm uma vida fácil nesta época de citações inspiracionais na net) foi tocado com o humor que merece. Vera Morais encontrou poesia que pede ser cantada e formas interessantes de a cantar, colocando as palavras no local certo, valorizando-as individualmente e no discurso. Hristo soube sempre o que fazer neste território tão árido e difícil como acompanhar o dizer de um poema. Nunca foram óbvios ou repetitivos e souberam fazer uma leitura culta do material literário, mostrando uma maturidade invulgar como improvisadores, não se limitando aos processos mais óbvios (imitação ou crescendo/diminuendo). Vera, afinadíssima e seguríssima, disse e cantou de um modo natural. Soube estar em palco, numa situação difícil, muito próxima da plateia, com alma e atitude. Hristo foi sempre capaz de propor ideias interessantes no saxofone, também com um som limpo e afiado. Uma clarividência impressionante para a idade que os dois músicos têm. Foi um prazer começar com este concerto feliz que inaugurou o dia mais intenso do festival e que assim fez antecipar o melhor.

 Vera Morais e Hristo Goleminov

Descemos dois lanços de escadas técnicas e fomos para o sub-palco. À nossa espera estavam já os músicos e um auditório improvisado, por baixo do palco principal. Outro dos aspetos curiosos para o público do Porta-jazz é este deambular pelos espaços secretos do teatro, que nos levam para zonas normalmente só acessíveis aos artistas e técnicos.

Tocaram o chamado Ensemble Robalo/Porta-Jazz, que representa a habitual parceria entre a Associação Porta-Jazz, criada pelos músicos do Porto, e a Associação Robalo, criada pelos de Lisboa. É um grupo mutante, que se renova de concerto para concerto. A cantora Leonor Arnaut, o trompetista João Almeida e o contrabaixista João Fragoso foram os enviados especiais da capital, para se juntarem com os guitarristas Eurico Costa e Nuno Trocado e a bateria de Gonçalo Ribeiro. A música soou orgânica, com alguns momentos mais organizados. Leonor Arnaut nunca se assumiu como cantora, passando a integrar um fundo sonoro que frequentemente tendeu para o noise. Raros foram os momentos em que sentimos o grupo a partilhar ideias ou mesmo a gerir dinâmicas e intensidades. Parecia haver receio em avançar e tudo se passou em segundo plano, numa massa sonora conjunta, que teve poucos momentos de interesse.

 Ensemble Robalo/Porta-Jazz

Feito um pequeno intervalo de uma hora, o festival regressou, no palco do Pequeno Auditório, para a apresentação pública de mais um disco, desta feita o “Ninhos” de Joana Raquel e Miguel Meirinhos. Ainda o concerto estava no adro e pudemos presenciar, mais uma vez, uma cantora envolta sobre si mesma, uma presença tímida, visualmente pouco interessante e um cantar suave, sussurrado, agudo. Nem sempre consegui – certamente por falta de capacidade minha, mas eventualmente também da composição – acompanhar as ideias expressas nas letras das canções; pareceram articulações para-poéticas cabalísticas, só entendíveis por quem estiver por dentro do universo referencial da autora. Não é o meu caso, fiquei de fora («são desertos, mas cá dentro, sem ter gente, sem ter vento, são desertos, são imensos receios urgentes, são desertos mas cá dentro sem ter gente, sem ter vento, são desertos, são imensos, receios urgentes, o meu corpo é um deserto onde nascem cardos amarelos»). Sentimos que todas as músicas acontecem em registos lentos e pendulares e que a voz opera também sempre com o mesmo tipo de estratégias, com picos de agudos cíclicos que, ao fim de um certo tempo, fatigam. As canções vivem num mundo tímido que, ao vivo, se torna ainda mais evidente e distanciador. Contudo, o concerto teve o interesse de dar a ouvir ao vivo o pianista Miguel Meirinhos: um pianista jovem mas muito interessante a quem convém estar atento no futuro, que toca como um Matthew Shipp mais conservatorial. Demian Cabaud no contrabaixo e João Cardita na bateria igualmente eficientes e por isso o concerto deixou-se ouvir.

 Joana Raquel "Ninhos"

Não foi preciso sair da sala para, depois de um curtíssimo turnaround de instrumentos e amplificação, estarmos a ouvir os Puzzle 3, um trio do Porto que tem um bom Instagram. E se refiro este aspeto aparentemente fútil é porque ele surgiu como brincadeira na apresentação feita por João Paulo Rosado, o contrabaixista; mas também porque esta questão e outras que envolvem a prática da música são grandemente descuradas em Portugal (só o disco dos Puzzle 3 está na Apple Music, por exemplo...).

Se começámos por referir a qualidade da organização deste festival não é despropositado a talho de foice, referir a falta de investimento em comunicação e divulgação – website, redes sociais, presskits, bandcamps, etc. – dos músicos portugueses. Ao contrário de outros países europeus, temos uma quantidade enorme de bons músicos, com projetos interessantes e originais, mas que não investem num dos aspetos fundamentais da atividade musical: a comunicação (incluindo – e os cantores neste domínio têm responsabilidades acrescidas – o modo como se apresentam em palco, vestidos com a mesma roupa que usaram para ir ao Leroy Merlin comprar material para instalar umas luminárias).

E esta questão tem tanto de individual (cada um fazer a sua parte) como de coletiva. Se hoje falamos da “cena inglesa” é porque cada um fez a sua parte, mesmo que a Nubya Garcia e os Sons Of Kemet não tenham nada que ver uns com os outros. O Porta-Jazz é um bom exemplo de como a organização e a comunicação fazem a música acontecer.

Os Puzzle 3 têm Instagram. E, loucura, Bandcamp. E comunicam em palco! Só por isso já convenceram. Mas há mais. Bons músicos, com bom som nos respetivos instrumentos, boas canções, bom espetáculo. A música dos Puzzle 3 é boa de ouvir porque equilibra brilhantemente as questões melódicas com as rítmicas. De algum modo radica na fórmula inventada pelo Esbjörn Svensson Trio (excepto o uso da eletrónica), onde encontramos melodias lindíssimas e processos de as desenvolver muito interessantes. Os três músicos são recorrentes na cena musical portuense e participam em vários projetos, mas este em particular que os une em trio é particular. São processos simples, canções, que começam por ser apresentadas montadas, para depois serem desagrupadas rítmica e melodicamente e novamente reconstruídas («the cue is in the title»). Pedro Neves é excelente no piano, sereno, simples, criativo. Muito boa também a bateria de Miguel Sampaio, sempre preocupado em criar processos rítmicos interessantes e com uma escrita muito bonita (foram dele os dois primeiros temas do grupo). João Paulo Rosado, o speaker do grupo, tem um som de contrabaixo invejável, cheio e sereno, e contribui grandemente para o atraente groove soul de alguns temas.

Puzzle 3 "D"

 Demian Cabaud

Pequeno intervalo para alimentação e o festival regressa ao palco principal para mais dois concertos. Primeiro o mais-que-portuense franco-argentino Demian Cabaud veio apresentar o “Otro Cielo”. A música de Cabaud sempre foi feita de irregularidades e de elementos complexos, difíceis de digerir.  “Otro Cielo”, o primeiro disco editado pela Carimbo em 2021, junta-o a João Pedro Brandão e José Pedro Coelho nos saxofones, João Grilo no piano (magnífico esta noite) e ao habitual (dr.) Marcos Cavaleiro na bateria. Tal como no disco, o concerto foi grandemente assente em improvisação estruturada a partir de momentos escritos e deu-nos a ouvir excelentes músicos que tocam para a frente e com intensidade.

 Hugo Raro

O fecho do segundo dia juntou o grupo do pianista Hugo Raro, que tem uma instrumentação invulgar (guitarra portuguesa, clarinete baixo, bateria), com o artista plástico JAS, que executou pinturas em palco. Esta ideia foi impulsionada pelo Guimarães Jazz, que tem desde há vários anos uma parceria com a Associação, estimulando o cruzamento de artes. E se estas interseções nem sempre dão bons resultados (é um risco, como em tudo na vida), tendo em consideração que Hugo Raro resolveu repetir a experiência feita na Black Box de Guimarães, percebemos que o pianista achou que esta foi feliz.

E assim tivemos um concerto com uma sonoridade invulgar e onde o artista plástico pintou ao vivo, a branco, uns retângulos transparentes com uma figuração primitivista (a evocar Basquiat) que amplificava para a sala com um bem pensado jogo de luzes e projeções no teto e nas paredes do auditório do Rivoli. A música deste grupo está limitada pela instrumentação, que não é própria para grandes momentos de rasgo e energia e por isso acontece. É entre o piano e o clarinete que a maior parte das coisas acontecem, ficando a guitarra portuguesa dedicada a criar uma textura sonora que nos é tão familiar. Fechou bem o segundo dia, criando expectativas para o terceiro e último.

O 12.º Festival Porta-Jazz chegará hoje ao fim com mais seis doses de música servidas em três blocos horários: às 16h Residência AMR/Porta-Jazz e WIZ, às 18h15 encomenda a Daniel Sousa e Miguel Ângelo com a “Dança dos Desastrados” e às 21h30 Alfred Vogel “Nest” e António Loureiro “Conexão”.

Agenda

30 Maio

Hugo Ferreira e Miguel Meirinhos

Maus Hábitos - Porto

01 Junho

Beatriz Nunes, André Silva e André Rosinha

Brown’s Avenue Hotel - Lisboa

01 Junho

Ernesto Rodrigues, José Lencastre, Jonathan Aardestrup e João Sousa

Cossoul - Lisboa

01 Junho

Tracapangã

Miradouro de Baixo - Carpintarias de São Lázaro - Lisboa

01 Junho

Mano a Mano

Távola Bar - Lisboa

02 Junho

João Mortágua Axes

Teatro Municipal da Covilhã - Covilhã

02 Junho

Orquestra de Jazz da Universidade de Aveiro & Shai Maestro

Auditório Renato Araújo - Universidade de Aveiro - Aveiro

02 Junho

Seun Kuti & Egypt 80

Auditório de Espinho - Espinho

02 Junho

Vasco Pimentel Trio

Fórum Cultural de Alcochete - Alcochete

02 Junho

Jam Session com Mauro Ribeiro Trio

GrETUA - Aveiro

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