Festival Rescaldo
Palco privilegiado
No seu regresso pós-pandémico, o festival Rescaldo apresentou um programa rico, ao longo de cinco noites (de 2 a 5 de março), em quatro espaços diferentes da capital (Damas, CCB, ZDB e Igreja de St. George). Ao longo da sua história, o Rescaldo afirmou-se definitivamente como palco privilegiado para os projetos da música experimental nacional, dando sempre amplo destaque às músicas improvisadas. O festival arrancou no dia 2, no Damas, com as atuações de Carlos "Zíngaro" e Clothilde.
Carlos "Zíngaro" é, sem sombra de dúvida, uma das figuras mais consensuais da cena improvisada, nacional e europeia. No festival IndieLisboa será estreado um documentário sobre o seu percurso e obra, "A Escuta", da realizadora Inês Oliveira (dia 30 de abril, às 18h00). Antecipando essa exibição, "Zíngaro" apresentou no Damas uma atuação a solo de improvisação livre, acompanhado pela projeção de excertos desse filme a estrear, exibidos aqui em primeira mão. A sala estava cheia e o público acompanhou com atenção a atuação. O músico ia explorando no violino diferentes ideias, até se fixar num motivo. "Zíngaro" é um músico particularmente notável na interação com outros músicos, pela sua elasticidade, pela sua capacidade de reação e resposta. Desta vez trabalhou com as imagens como se tratasse de um duo, reagindo aos diferentes momentos – por exemplo, num momento em que se mostrava o movimento de um pincel sobre a tela, o arco imitava esse movimento trémulo. Ao longo da atuação foi expondo um motivo melódico central, recorrente, ao qual regressava nos momentos de maior luminosidade. Foi mais uma atuação brilhante de um músico que merece todo o nosso reconhecimento.
Seguiu-se a atuação de Clothilde, numa performance a solo, com sintetizadores modulares. Perante o emaranhado de fios coloridos e caixas sobrepostas, Sofia Mestre ia lançando camadas de sons que, estruturados, iam fazendo uma espécie de colagem sonora, contribuindo para um fluxo musical. A proposta resultava num ambiente nebuloso, com pontuais momentos hipnóticos. Apesar de a atuação nem sempre ter revelado uma máxima intensidade, assistiram-se a momentos interessantes.
Ao segundo dia, o Rescaldo mudou-se para o Centro Cultural de Belém. A sala do pequeno auditório mostrou-se despida, estaria ocupada com cerca de 1/3 da lotação. Para esta segunda noite de festival estavam previstas três atuações: Vasco Alves, Toda Matéria e O Carro de Fogo de Sei Miguel. Começou Vasco Alves, a solo, com gaita-de-foles e eletrónicas. Numa atuação curta, com gaita-de-foles em registo minimal e apoio eletrónico, apresentou uma atuação que teve tanto de performance como de desafio. Musicalmente não terá sido das propostas mais ricas, mas não deixou ninguém indiferente e certamente provocou questionamentos.
Seguiu-se a vez de Toda Matéria, trio de Joana da Conceição (eletrónicas), Sara Graça (voz e eletrónicas) e Maria Reis (percussão e voz). A atuação arrancou com cada uma das intervenientes a entrar em palco escondida atrás de uma espécie de biombo móvel (com formas recortadas). Assim foi início, apenas três biombos em movimento no palco. Conceição começou a criação sonora trabalhando ambientes eletrónicos atmosféricos, sobre os quais surgiu a voz de Maria Reis (recordemos que as Pega Monstro foram um dos mais notáveis fenómenos rock na última década em Portugal). A voz declamava uma frase repetida, como se fosse um loop, até que Maria Reis se sentou na bateria e alimentou a turbulência rítmica, em contraste com as eletrónicas. Sara Graça juntou-se, com voz e eletrónicas, na massa sonora, que foi ficando cada vez mais interessante à medida que elementos se iam somando. Numa atuação que teve também um grande teor performativo, a vertente musical revelou igualmente momentos de interesse.
Para fechar a noite do Rescaldo, chegou O Carro de Fogo de Sei Miguel. Ao lado de Sei Miguel (pocket trumpet, composição e direção), estavam Fala Mariam (trombone), Nuno Torres (saxofone alto), Bruno Silva (guitarra elétrica), Pedro Lourenço (baixo elétrico), André Gonçalves (órgãos), Raphael Soares e Luís Desirat (percussões). No final de janeiro tivemos a oportunidade de assistir a uma atuação d’O Carro de Fogo na ZDB. Com a mesma exata formação desse concerto (e também o mesmo grupo que gravou o disco homónimo, editado pela Clean Feed), a atuação do grupo no CCB assentou na mesma estrutura e princípios, embora com desenvolvimentos diferentes. Ao leme, Sei Miguel arrancou, entrando depois os diversos elementos sonoros do grupo, todos contribuindo para a massa sonora coletiva que ia crescendo, lentamente. Nesta ocasião o trompete de Sei Miguel soou particularmente focado, com momentos que pareciam evocar melancolia. Confirmou-se como mais uma aparição memorável d'O Carro de Fogo, com uma música que nasce meticulosa e cresce com a força do coletivo.
O festival Rescaldo continuou nos dias seguintes, com atuações de Má Estrela, Máquina Magnética, Onda Xoque, Medusa Unit, Hetta, Rodrigo Amado & Tó Trips DJ Set, Banha da Cobra e Pedro Carneiro – concertos que não tivemos oportunidade de presenciar.