Wayne Escoffery Quartet
Sobre os ombros de gigantes
A jazz.pt foi ontem à noite ao Hot Clube de Portugal ouvir o quarteto do saxofonista norte-americano Wayne Escoffery.
Foi sob um céu quase marciano – cortesia das poeiras carreadas do norte de África pela depressão Célia – que a jazz.pt foi ontem à noite ao número 48 da lisboeta Praça da Alegria para testemunhar o regresso aos palcos nacionais (em data única) do saxofonista, compositor e educador norte-americano Wayne Escoffery (Londres, 1975). A encetar uma digressão europeia de duas semanas (abortada aquando do eclodir da pandemia), o saxofonista veio acompanhado pelo seu sólido quarteto, que se completa com o superlativo pianista David Kikoski, o contrabaixista Ugonna Okegwo e o baterista Mark Whitfield II (que substituiu Ralph Peterson, tragicamente desaparecido em março de 2021). Como nas grandes noites do Hot, uma sala apinhada até à porta, com muitos estudantes entusiasmados, mostra que tudo está a regressar à normalidade.
Escoffery, que antes de optar pelo saxofone trabalhou como cantor no histórico Trinity Choir of Men and Boys em New Haven (cidade para onde se mudara em 1986) – facto que é por demais evidente na sua abordagem ao instrumento –, trouxe na bagagem não apenas o muito bem recebido “The Humble Warrior”, álbum de 2020 na editora Smoke Sessions, mas também, e em estreia, algum material novo, que o quarteto gravará em estúdio assim que a presente digressão termine. Ao longo dos anos, o saxofonista provou não apenas ser um sideman seguro e competente em diferentes contextos (Eric Reed, Bill Charlap, Bruce Barth, Mingus Big Band, Monk Legacy Septet de Ben Riley, Ron Carter Big Band, Tom Harrell Quintet), tanto em termos de dimensão como de configuração instrumental, como líder das suas próprias formações. Tudo isso veio à tona.
A função iniciou-se com “Chain Gang”, em que Escoffery reata os longevos laços entre as canções de trabalho e o jazz (não esquecer o papel que aquelas tiveram na pré-história do género) – inspirado na gravação que o musicólogo Alan Lomax fez do descarnado blues “I Be So Glad When The Sun Go Down,” cantado por Ed Lewis e outros reclusos na Parchman Farm, quinta prisional de tão triste memória (ainda em funcionamento). À magnífica intervenção inicial do saxofonista, Kikoski acrescentou a primeira de várias declarações empolgantes; conhecemo-lo bem como pianista versátil, notável ouvinte e sempre pronto para acrescentar graus de liberdade ao que a cada instante acontece. Okegwo e Whitfield foram uma dupla rítmica férrea e capaz de manter a pulsação sempre viva. Mais do que para campos de algodão, caminhos-de-ferro ou minas, a música transportou-nos para o bulício inexorável da vida contemporânea.
Em “The Humble Warrrior” Escoffery trabalhou na reconfiguração da “Missa Brevis in D (Op. 63)”, obra coral que o compositor britânico Benjamin Britten terminou em 1959, e que o saxofonista cantou no coro, em criança. E não, não se trata de uma mera “jazzificação” académica e inócua, como as que por aí há, mas antes uma releitura criativa muito interessante que leva a obra para outro, e desafiante, plano. Na secção “Kyrie”, introduzida com certa solenidade, o motivo central é utilizado como acendalha para um arranjo que a espaços se torna lento e sufocante, noutros de grande agitação e intensidade. Escoffery alternou eficazmente entre o tenor e o soprano; a dado momento deixou o palco e permitiu que os outros três levantassem voo (nova intervenção potente de Kikoski).
Depois de um sentido blues, com todos os seus pertences, atacou, qual nova roda numa longa cadeia de influências, “Sincerely Yours”, composição recente baseada em “Dear John”, do trompetista Freddie Hubbard (quem quiser escutar o original basta ir ao álbum “Bolivia”, de 1991), por sua vez assente em “Giant Steps”, de John Coltrane – no fundo, melodias novas sobrepostas a estruturas harmónicas pré-existentes – exibindo toda a agilidade do seu saxofonismo, com Kikoski de novo a brilhar e a secção rítmica a carburar em pleno. Houve tempo para prestar sentido tributo a Ralph Peterson (cujo papel no grupo o saxofonista muito elogiou) e também para assinalar o 60.º aniversário do contrabaixista, com parabéns a você entoado a plenos pulmões e bolo de velas. Já em encore, o quarteto ofereceu-nos uma peça que alternou entre a balada noturna e um reconfortante tempo médio.
Em “The Humble Warrior”, Escoffery presta tributos aos músicos (os “guerreiros”) que mais catalisaram o seu próprio percurso enquanto criador, como o saxofonista Jackie McLean (de quem é discípulo) e o pianista Mulgrew Miller. Nesta sua aparição na capital portuguesa, deu ele próprio uma lição sobre o poder das interações e das sinergias, concedendo amplo espaço de manobra a quem com ele partilha o palco, músicos que sublinham a traço grosso os seus propósitos sem deixarem de exibir as suas próprias vozes. Um jazz estilisticamente balizado, ancorado na tradição e erguido na esteira dos gigantes, que soube muito bem escutar.