Jazz no Parque
Do violino solitário ao canto dos pássaros
Com programação de Rodrigo Amado, a 31.ª edição do Jazz no Parque foi marcada pela mudança. O ciclo de Serralves arrancou no dia 2 de julho, com atuações de Maria da Rocha e do Luís Vicente 4tet. A jazz.pt não podia faltar.
A 31.ª edição do Jazz no Parque foi marcada pela mudança: a programação do ciclo de jazz de Serralves passou a ser assegurada pelo saxofonista Rodrigo Amado (também fotógrafo e crítico de jazz). Depois de António Curvelo (o primeiro programador do ciclo) e Rui Eduardo Paes (curador entre 2014 e 2021), Amado apostou na continuidade, apresentando uma linha de jazz contemporâneo, um jazz vivo e aberto à improvisação e outras contaminações. Contudo, a sua programação revelou novidades: em vez dos habituais três concertos no campo de ténis, este ano passaram a cinco: três no ténis e dois na Casa de Serralves. Há ainda um detalhe muito significativo: dos cinco concertos, três são projetos liderados por mulheres.
O ciclo arrancou no dia 2 de julho, com dois concertos: Maria da Rocha na Casa de Serralves às 16h00 e Luís Vicente 4tet no campo de ténis às 18h00. A violinista Maria da Rocha partiu de uma formação clássica, mas tem explorado outros universos musicais, sobretudo os mundos da improvisação e da exploração eletrónica. Essa exploração tem sido registada nos álbuns “Beetroot & Other Stories” (Shhpuma, 2018) e “nolastingname” (Holuzam, 2021) e foi aí que a violinista foi buscar material para esta atuação. Mas este concerto foi especial: Maria da Rocha apresentou o material em adaptação para versão exclusivamente acústica. Ou seja, despida dos elementos eletrónicos, o violino acabou por inevitavelmente cair numa toada clássica.
A primeira parte da atuação juntou várias peças, que iam sendo interligadas pela violonista - “Fogo”, “Smog” e “Neve. Após uma pausa, Maria da Rocha serviu-se de temas de “nolastingname”, a gravação mais recente. Apesar de se tratar de um solo de violino, não se sentiu qualquer vazio, o espaço era sempre muito preenchido. Ao longo da atuação a violinista foi mostrando os seus temas originais, onde havia espaço para improvisação, que revelavam traços da sua formação clássica. A interpretação, focada, acrescentava aos temas uma carga dramática, peso e tensão. Mas não se ficava por aí: pelo meio, Maria da Rocha, introduzia elementos curiosos e disruptivos. Um exemplo: ao mesmo tempo que ia gerando um som contínuo no arco, trabalhava um pizzicato contrastante. E se nos seus discos se ouve uma música assombrada, fantasmagórica, ao vivo Maria da Rocha mostra uma música mais viva, plena de cores. Foi uma atuação surpreendente, com uma música aberta que foge de categorizações e desafia. Ficámos curiosos para ouvir uma performance da violinista com o acrescento da eletrónica, com uma maior fidelidade às gravações que lhe conhecemos.
Há que deixar uma nota negativa para a escolha do espaço: sendo a Casa de Serrralves um belíssimo núcleo museológico (atualmente a albergar obras de Miró), a sala do concerto revelou-se demasiado pequena e com demasiado calor – que perturbou o conforto do público e, sobretudo, da violinista.
Seguiu-se depois, no campo de ténis, a atuação do Luís Vicente 4tet, um grupo que juntou o trompetista lisboeta com os americanos John Dikeman (saxofone) e Luke Stewart (contrabaixo) e o portuense Pedro Melo Alves (bateria). O grupo estreou-se no ano passado e a formação original conta com o baterista holandês Onno Govaert que, não podendo atuar, foi aqui substituído por Melo Alves. O quarteto interpretou composições de Vicente, alguns já registados em discos com outros grupos: “Anahata”, “Little Dance” e “House in the valley”. O quarteto trabalhou temas longos que, a partir de uma base de composição, se vão abrindo à improvisação, com muitas oportunidades para solos - e eram explorados em diferentes ambientes em diferentes momentos. Logo ao primeiro tema sentimos a saliente veia ayleriana, com o quarteto a atacar aos temas com alta intensidade, mostrando uma música herdeira da “fire music”. Desde logo, o contrabaixo de Stewart destacou-se, exibindo pujança e originalidade. Contudo, apesar de alguns bons pormenores individuais, o grupo pareceu ter falta de rodagem e nem sempre a música resultou fluída.
Ao segundo tema, “Little Dance”, depois de o saxofone de Dikeman se mostrar incendiário, o contrabaixo voltou novamente a roubar as atenções, sempre a acrescentar ideias, tendo-se seguido um interessante solo de Vicente no trompete. Em “House in the Valley”, terceiro tema, o quarteto mudou de registo: desta vez não se ouviram os gritos e crescendos enérgicos, o grupo trabalhou uma exploração mais subtil, microtonal – e, por momentos, Vicente emulou o canto dos pássaros (bonito momento). Para fechar, o quarteto atacou “Come down here”, um tema inédito, e o tom imperativo do título reflete-se na música: rápido e enérgico, com um solo inicial de Dikeman de altíssima intensidade. Pelo meio ouviu-se mais um belíssimo solo de Stewart, com a aparente descontração de quem o faz sem nenhum esforço.
Este jazz, apesar do seu arrojo modernista (da grande abertura à improvisação, da proximidade com o “free”), conquistou o público presente, confirmando que o público de Serralves está aberto a propostas arriscadas, se houver uma base jazzística. Apesar da falta de rodagem e ligação do coletivo, o quarteto revelou apontamentos muito positivos. Ficamos a aguardar os seus próximos passos.
O ciclo de Serralves continua no dia 9 com Mette Rasmussen Trio North (às 18h00, no campo de ténis) e no dia 16 atuam Sara Serpa com “Intimate Strangers” (às 16h00 na Casa de Serralves) e o trio Ricardo Toscano / João Barradas / João Pereira (ténis, às 18h00).
A jazz.pt viajou a convite do Jazz no Parque – Fundação de Serralves.