Que Jazz É Este?, 24 de Julho de 2022

Que Jazz É Este?

“Ou somos exatos ou estamos vivos”

texto: Gonçalo Falcão / fotografia: Luís Belo

A frase estava bem grafada num tapume na zona histórica. Assinada “Jardins efémeros” fala-nos de um grupo de associações que vão dinamizando a vida cultural da cidade (para além do Teatro Viriato). A Gira Sol Azul é uma delas que organiza um festival de jazz ambicioso, com um variadíssimo número de ações: debates, emissões radiofónicas, concertos na rua, concertos ao domicílio (a montanha vai a Maomé, neste caso a locais onde o jazz não pode ir como à prisão ou a internatos), filmes, exposição e os concertos. São cinco dias com quarenta e oito (!!!!) acontecimentos dos quais quatorze são concertos. Deixámos Viseu sem saber se os responsáveis pela organização sobreviveram.

No jardim permanente e centenário da Casa do Miradouro estava a vida inexata do jazz. Cheia de incertezas e indefinições como nós gostamos. Foi ali que começámos a viagem pela 10.ª edição do “Que Jazz É Este?” um festival que se nomeia com uma interrogação. A beleza de inexatidão.

Gente nova na organização, gente nova em palco, gente nova na plateia. Serve a repetição para enfatizar a primeira boa surpresa da 10.ª edição do “Que Jazz É Este” o festival promovido pela associação Gira Sol Azul em Viseu. Chegámos no segundo dia, já o evento levava 16 iniciativas ( conversas, filme, rádio) e dois concertos: do Combo Jazz Gira Sol Azul (feat. Smoke Hills) e do Pedro Moreira Sax Ensemble.

Peixe-Boi


Os concertos do segundo dia começaram às 19h com os Peixe-Boi, um trio de guitarra, contrabaixo e bateria de um jazz muito tingido pelo rock (entrevista por Nuno Catarino aqui). João Carreiro guitarra, João Fragoso contrabaixo, Miguel Rodrigues na bateria. O concerto tocou num jardim altaneiro, com uma vista panorâmica sobre a cidade e com a plateia cheia.

A música encaixou perfeitamente no cenário e o contrário também foi verdade. Composições simples que se desenvolvem com previsibilidade, fazem um bom uso da guitarra elétrica. Se no trio de Hendrix temos o ponto máximo da guitarra a fazer todo o serviço, aqui temos muito equilíbrio entre a melodia, a harmonia e a secção rítmica que participa de forma muito ativa na criação de ideias em vez de só acompanhar. Vão puxando os três por um bloco inicial regular que se vai modelando como se fosse plasticina. As formas que vão aparecendo, nem sempre previsíveis, o que fez com que o concerto se ouvisse com muito prazer.


À noite fomos até ao parque da cidade que estava devidamente equipado para as noites de Verão: várias bancas com artesãos, comidas e doces, beberes a condizer. As centenas de cadeiras na relva foram enchendo e na hora do concerto da noite estariam mais de 250 pessoas em volta do palco, algumas na relva por falta de espaço na plateia. 

O “Coletivo Gira Sol Azul” tocou o jazz que Herbie Hancock nos ensinou: baixos fortes e repetitivos, piano elétrico, saxofone, bateria e guitarra elétrica. Liderados pelo convidado Jason Rebello, alguns dos membros da associação que organiza o festival tocaram um jazz elétrico alegre, muito estruturado e definido, com canções genéricas e solos que varrem a estrutura harmónica. Funk branco, pouco flexível, despretencioso, é um ponto de encontro e um processo partilhado de prazer. Convida a plateia a ficar, e gostaram. Depois de um começo instrumental entrou o coro de três vozes femininas e uma masculina para acolitar a cantora – Sumudu. Veio do Sri Lanka, é uma companhia regular de Jason e assumiu um papel tradicional da cantora nestes contextos. "Uma voz como mel" diz de si e concordamos.

O pessoal da casa mostrou estar tecnicamente bem apetrechada para tocar e a cantora, nem sempre com exatidão na afinação, cumpriu. A voz bem treinada neste género que se convencionou chamar de soft jazz nunca saiu do convencionado.

Jazz que não coloca questões e que se desenrola num modelo agradável, simpático e suave. Aqui em Viseu é um jazz relações públicas que é uma das resposta à interrogação do próprio festival.


No dia seguinte voltámos ao jardim da Casa do Miradouro para ouvir um quarteto de Lisboa, os Garfo.

Garfo


Era a primeira vez que ouvíamos ao vivo o disco recente que tão bom impressão deixou. Há imensa coisa a acontecer na música dos Garfo. Cada tema tem várias músicas dentro que começam quase sempre em processos repetitivos (no espírito de Reich ou Glass) que são cruzados com frases angulosas. A bateria e o contrabaixo cheios de ideias, sempre a propor coisas diferentes. Quer suportando e sublinhando a repetição, quer criando um mundo à parte. Que boa secção rítmica que o Bernardo Tinoco e João Sousa integraram que é capaz de alinhar bem nos ostinatos e daí conseguir partir para outras músicas. Quando achamos que percebemos .

Ao vivo a música dos Garfo ganha em surpresa e na maravilha de perceber a evolução das dezenas de coisas que acontecem dentro de uma música.

 


No parque da cidade a música não poderia ser mais diferente da dos Garfo. Seguindo a linha de programação do festival, a noite voltou a ser mais popular, cruzando a soul (a nova soul, não a da Stax/Mowtown) e o hip-hop (radiofónico). Jose James canta lindamente, sabe o que está a fazer, controla totalmente a voz e a afinação e usa uma expressividade suave e langorosa apropriada. Profissional, é um excelente comunicador que soube rapidamente encontrar argumentos locais para falar com o público. Um entertainer na melhor tradição americana soube fazer com que parecessem improvisadas e naturais as intervenções tão bem ensaiadas, como quando parecia estar a contar uma história sua aos jovens músicos locais e a banda arranca com o tema que ele vocalmente explicava. Colocou-se muito inteligentemente na posição de consagrado a dar conselhos aos mais novos e filosofia para posts de Instagram; filmou o concerto para as redes sociais (a sua conta deve ter ganho umas centenas de seguidores em segundos), tudo com elegância e profissionalismo.


Os solos de bateria acabaram por ser a melhor parte da noite. Richard Spaven tem muito pouco espaço criativo pois é sua a missão de manter a batida fácil e o bate-pé.Foi por isso admirável ouvir a forma como conseguiu ser criativo dentro de colete de forças apertado. Usou o detalhe e o espaço entre tempos. Já o teclado de BigYuki chuta para onde está virado. Bom num dos solos mas também francamente apalhaçado noutro, usando uma referência clássica de modo circense.

José James foi em tempos uma aposta da Blue Note para o jazz vocal  tem uma voz ampla e é capaz de produzir diferentes texturas. Com graves profundos e agudos difíceis, James cruza o hip hop e a soul music, sabe improvisar, tem um repertório inteligente com canções fáceis no início e outras mais complexas a meio. Apesar da escolha de um alinhamento fácil para o concerto de Viseu – e bem, tendo em conta o contexto – a versão de “Park Bench People” dos Freestyle Fellowship mostrou que há muito mais música do que aquela que até ali parecia haver. 

Chegámos ao quarto dia do festival e à tarde fomos até ao Hotel Grão Vasco à tarde para o primeiro de três concertos. Após 3 dias de trabalho, os participantes do 14.º Workshop de Jazz de Viseu subiram ao palco instalado nos jardins do hotel, para partilharem o resultado do trabalho. Sob a orientação de Jason Rebello e do saxofonista espanhol Xose Miguélez, o grupo tocou, como se esperava, um funky e bossa-nova propedêuticos. A Leonor na guitarra, Inês no baixo, Jasmin no trompete e o Miguel no saxofone deixaram desde logo boa nota.

 


Seguimos depois para o Teatro Viriato para ouvir o Manuel Linhares. O concerto foi em tudo semelhante ao que já tínhamos presenciado no Rivoli. O cantor explicou que estava a apresentar o seu último disco (crítica de António Branco aqui) que foi grandemente escrito nos primeiros 15 dias de reclusão impostos pela necessidade de controlar a pandemia. Sozinho, num quarto com um piano, o cantor escreveu estas canções que de algum modo transportam essa limitação. Música delicada, fina, pequena, com esquemas vocais repetitivos. Quase canções de embalar, onde o tempo passa devagar. O inglês de Linhares não é o melhor e por isso as canções em português são as que se ouvem melhor.


Há um grande profissionalismo neste espetáculo que está bem ensaiado. O trio que acompanha Linhares, liderado pelo piano de Paulo Barros e com José Carlos Barbosa e João Cunha na secção rítmica é igualmente muito competente.

 


À noite o jazz era outro. Os holandeses/belgas/português dos Spinifex são uma máquina infernal e a nossa curiosidade era muita. Não só pela música, mas também para perceber o encaixes deste projeto com o público, habituado que estava a músicas bem mais fáceis e simples.

Vieram a Viseu com uma formação alargada com duas cantoras – a islandesa Björk (“Luckily, the clue is in the title”[1]) Níelsdóttir e a indiana Priya Purushothaman, renomeados para Spinifex Sings.


A música deste sexteto, que integra o português Gonçalo Almeida, radicado em Roterdão, no baixo, é feita de rapidez, mudança e intensidade. A introdução das vozes obriga o grupo a abrandar e a criar espaço. Resulta muito bem e de algum modo aponta novos caminhos para esta fórmula que radica nos X-Legged Sally, Naked City, L'Orkestre des Pas Perdus e outros projetos que usam o rock e o zapping no jazz. Liderados pelo sax alto de Tobias Klein os Spinifex contam com um grupo de músicos notável. Desde logo a guitarra elétrica de Jasper Stadhouders, tecnicamente fabuloso e excelente a improvisar. É capaz de tocar convencionalmente a 200km/h e improvisa do modo mais aberto e abstrato. Um guitarrista complete. O trompetista Bart Maris (que tocou nos X-Legged Sally de Peter Vermeersch, hoje líder da não menos especial big band “Flat Earth Society”) conhece bem este género e também é um ótimo solista. John Dikeman é um saxofonista incrível. Gonçalo Almeida no baixo elétrico entra aqui numa linguagem em que não estamos habituados a ouvi-lo e adapta-se na perfeição. Dobra a guitarra toca forte, rápido e profundo. Segura as mudanças de tonalidade para que os metais possam flutuar e apoia a bateria na criação de uma linha grave, saturada, fundamental. Foi um prazer ouvi-lo a rockar. 

Björk Níelsdóttir


O modo como os Spinifex cantam também deve ser referido. As duas cantoras não estão em palco só para acentuar a estrutura harmónica com contínuos vocais, como vimos acontecer com Jason Rebello. Trazem as músicas dos seus países e as composições e a música dos Spinifex adapta-se às repetições mântricas indianas ou à lentidão aberta da composição islandesa. É maravilhoso ouvir músicos a serem músicos, a quererem ir para sítios desconhecidos em vez de tentarem desesperadamente vergastar um cavalo morto. O melhor concerto do festival.

O público: ficou. Alguns não conseguiram, mas a esmagadora maioria ficou e ouviu até ao fim e aplaudiu. Alguns de pé. Prova-se que o “Que Jazz É Este?” é capaz de formar públicos.

 


No último dia do festival tocou o Miguel Valente Quarteto. O novíssimo saxofonista começa agora a fazer-se notar e por isso foi com curiosidade que fomos até à Pousada de Viseu para o ouvir. A sala do concerto era a pior possível: um claustro enorme, com um pé direito altíssimo fazia um reverb longo e não permitia definir o som dos instrumentos. E se louvamos o esforço de ter que tocar contra a sala não podemos deixar de notar que nem sempre encontraram as melhores soluções para o fazer, em particular Luis Possolo que teimou em tocar forte quando isso absorvia todo o som do grupo. Ouvimos jazz canónico, conservatorial tocado por músicos tecnicamente bem apetrechados. Ficámos com pena que não houvesse mais arrojo e vontade de criar novidade.

E para fechar em festa o festival convidou a cantora Karyna Gomes que veio da Guiné apresentar “N’na”, o seu novo disco com uma matriz afro-pop. Não há nenhuma regra que obrigue um festival de jazz a só ter jazz e por isso este fecho festivo, dançável, ao ar livre num fim de tarde quente foi bem vindo. Música africana à procura de se resolver nas tendências da pop, uma voz bonita e sensual, e o festival despediu-se na natureza, por entre as árvores, com miúdos a serem miúdos, adultos deitados na relva, deixando vontade de voltar. 

Nota final para as Jam sessions que seguem os concertos da noite, no magnífico Carmo81, ouvimos Jasmim e Miguel Fernandes (com 12 anos!) a tocar com a guitarra de Jasper Stadhouders e o trompete de Bart Maris. Que prazer ouvir o Miguel a atirar-se para a frente, a solar com alegria, sem medo e com atitude. Espero poder reencontrá-lo daqui a uns anos noutro palco.



[1] Ricky Gervais: “We didn't evolve; God made us. So I just want to explain to you exactly how that happened... Some of the things you'll hear do sound a little bit far-fetched. I admit that. Then I found out that the other name for “The Bible” is “The Gospel”. So it is all true. Luckily, the clue is in the title.”

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