Festival Causa Efeito
Os aviões e o jazz
O melhor festival de jazz nacional, o Jazz em Agosto (preview aqui), acontece numa das linhas de aterragem e descolagem do aeroporto de Lisboa. O segundo melhor festival de jazz da cidade, também.
Uns metros antes do auditório ao ar livre da Gulbenkian, ergue-se o paralelepípedo da reitoria da Universidade NOVA que em 2023 comemora 50 anos. E como é próprio de uma instituição de ensino (mas nem sempre acontece), elegeu a cultura como uma das formas de celebração, e o jazz como uma das suas expressões. E se a escolha do jazz é, por si só, de elogiar, é-o ainda mais porque não escolheu o jazz confortável, saneado, mas sim o jazz que questiona e faz avançar. O jazz é a música da dúvida sistemática, da repetição, do diálogo e da descoberta. No jazz a música só parcialmente está definida: constrói-se ao vivo, entre o que está notado e o que se descobre. Que melhor metáfora para simbolizar o espírito da instituição e para celebrar um passado apontando um futuro? Entre a Causa e o Efeito há um mundo.
O Causa Efeito começou com uma conversa sob o título "Jazz - Que Presente?" que juntou académicos e críticos, numa reflexão sobre onde estamos e para onde vamos em várias perspetivas. O humor do título (quantas conferências não se intitulam: qualquer-coisa: que futuro?" indicia também uma conversa desafiante sobre o presente, sobejamente complexo e multifacetado.
Este debate foi também o local para o lançamento de uma revista/programa que compila vários textos de reflexão - também académicos e não académicos - sobre esta música que nos levou à NOVA.
A inauguração musical fez-se num cenário fantástico, com um virtuoso. Sérgio Carolino trouxe o seu work-in-progress, o "Lusofone Lucifer", uma tuba gigante, feita da soma de partes de tubas falecidas. O instrumento é do seu tamanho e o som, nas suas mãos e boca, espantoso. Graves poderosos, um som cheio e intenso. Carolino usa notas curtas para construir uns baixos ritmados, para depois solar. Neste concerto foi mais abstrato do que o que gravou em disco e as suas bases para os solos ficaram menos organizadas, o que foi positivo.
O magnífico cenário feito pela escadaria do piso térreo - lanços largos em madeira e estuque decorado - que cria um grande espaço reverbeativo, conjugou-se para valorizar a mestria. E é de facto deslumbrante ver o tubista a lutar com aquela canalização de ar gigante e a extrair-lhe música que não sendo difícil de ouvir, também não assenta em ideias simples ou em fórmulas batidas.
Um excelente concerto, curto (aproximadamente 30 minutos) para abrir 4 dias intensos com mais 12 concertos por ouvir.
Descemos até ao auditório da reitoria que encheu para ouvir o concerto de Carlos Bica. Trazia o seu novo projeto, acabado de lançar em disco, “Playing with Beethoven”, que só tinha tido ainda uma audição, em Loulé.
Para este projeto Bica junta ao seu trio (com Daniel Erdmann no saxofone e DJ Illvibe nos gira-discos), o acordeão de João Barradas e relê uma série de composições Beethovianas. Esta ideia apresenta desde logo vários predicados positivos: a escolha do grupo, inteligentíssima, que com Barradas adquire uma capacidade orquestral campestre (de escala humana, não tem um volume imperial), a escolha do reportório – reler Beethoven – e em terceiro lugar um sentido de beleza coletivo, feito com imensa originalidade.
Dj Illvibe é Mídico: tudo o que toca é ouro. Consegue transformar qualquer tema numa peça original. Um bom gosto extremo, muito trabalho, segurança, ideias, virtuosismo. Traz as ideias preparadas e os discos escolhidos e marcados (à Christian Marclay) mas improvisa e aproveita muito bem os imprevistos que surgiram. Criou diálogos com Erdmann e cortou a potencial perigosidade kitsch de tocar a sonata ao luar (“Julie” na versão de Bica).
Barradas, também extraordinário criou uma base “orquestral” com acordeão, mantendo a sofisticação da música do genial compositor alemão. O seu solo deixou-nos encantados: muito inteligente o arranjo que faz da música, trazendo-a para o sec. XXI, com um staccato obsessivo. Um concerto muito especial em que tudo foi a procura de formas belas.
No segundo dia a proposta inicial foi “Abyss Mirrors”, o decateto liderado pelo guitarrista Luís Lopes.
Um grupo alargado com dez elementos, todo amplificado, requer um grande controle, o que não aconteceu. Sem rédeas, tendeu facilmente para o tutti e criação de massas sonoras informes. E se a primeira vez que isso acontece ainda nos encanta, como o mesmo fascínio do brutalismo soviético, na segunda, terceira... já não há surpresa. Apesar de Luís Lopes ter feito alguns sinais aos seus companheiros na parte final do concerto, não pareceram surtir qualquer efeito ou pelo menos, atuarem no sentido de contrariar o que já tinha acontecido. A improvisação tornou-se cíclica com os crescendos sonoros globais a darem lugar a momentos mais vazios que, em pouco tempo, aumentavam novamente. O grupo teve dificuldade em ficar em baixo e criar espaço para duos e trios ou para que a música de pequenas unidades se pudesse ouvir.
O disco dava boas indicações e por isso esperavamos mais e melhor.
À noite o cenário foi muito diferente com o trio de Susan Alcorn, Hernani Faustino e José Lencastre. A pedal steel guitar nos dedos de Alcorn é um encanto, com aquela sonoridade country deslizante a trazer novidades para o território jazzístico. O trio soube sempre ler o momento e seguir as boas ideias que vieram muitas vezes da guitarra horizontalizada. Houve muita gentileza na improvisação e vontade de ouvir.
O saxofone foi o instrumento que mais tentou criar um discurso paralelo, o contrabaixo esteve quase sempre a apoiar as ideias de Alcorn. Música feita com cuidado e improvisações com um enorme vontade de diálogo. A instrumentação – saxofone, contrabaixo e pedal steel guitar – tem uma invulgaridade que a torna atraente por si só e os três músicos – bons ouvintes – contribuíram para uma conversa aberta concordante.
O terceiro dia começou com a notícia que a varicela reteve Hugo Carvalhais em sua casa no Porto. O programado duo de contrabaixo e acordeão deu lugar a um solo de João Barradas. Foi lindíssimo. Barradas acabou de lançar um disco a solo na Clean Feed que iremos ouvir certamente.
O acordeão é um instrumento estranho que associamos sempre à música folclórica e o músico tem sido um dos que contribui para a sua abertura a outras tipologias, com o seu virtuosismo e inteligência musical. Importa e transfere de uns mundos para outros (da música escrita contemporânea para o jazz, por exemplo) e tem um discurso muito sofisticado (já referimos a sua leitura de Beethoven no concerto de Carlos Bica). Começou com um tema escrito por Carvalhais (para este duo) no acordeão sintetizado e depois tocou um seu no acústico. Seguiu-se Duke Ellington e Miles Davis (em que o acordeão quase simula um fender Rhodes). Acabou com um tema seu. Um concerto também curto (40 minutos) ideal para começar o dia, que ainda alinhava mais três.
O seguinte foi dos “The Selva”, um trio composto por Gonçalo Almeida no contrabaixo, Nuno Morão na bateria e Ricardo Jacinto no violoncelo (cujos discos revimos aqui e aqui). Foi apresentado pelo programador como um dos trios mais interessantes da cena da improvisação atual e no final do concerto concordámos com ele. Os dois cordofones – o violoncelo e o contrabaixo – com uma natureza muito semelhante constroem uma paridade tímbrica e expressiva que quase os obriga a terem que dialogar com os mesmos argumentos. Por isso dão-nos frequentemente formas musicais semelhantes - notas longas, feitas com o arco, por exemplo – procurando cada um o caminho próprio dentro daquelas formas.
A bateria de Morão tanto vai para mundos rítmicos vagos, criando apenas pontuações e acentuando os movimentos dos dois companheiros como ajuda a definir tempos rockeiros; andamos por vezes perto do que se convencionou chamar rock improvisado (art rock, pós-rock), desde os King Crimson mais recentes (pós “THRaKaTTaK”) ou o rock estático, como se tivessem encontrado a saída que os Tortoise não conseguiram ver. Os técnicos de som e luzes contribuiram para acentuar o sentimento rockeiro com um bom uso do fumo, ilumninação e amplificação.
Os The Selva são de facto um caso à parte, uma feliz coincidência de personalidades musicais e de instrumentos que se encaixam como peças de LEGO. A música é improvisada mas está sempre organizada com ideias, impulsos, balanços que servem de leitmotif para o desenvolvimento das canções; evoluem como se todas juntas fizessem parte de apenas um grande tema concertante. Ouvimos com imenso prazer.
“Como é que a Susana Santos Silva e o Carlos Bica nunca tinham tocados juntos?”, perguntou o programador na apresentação deste concerto. É de facto um mistério para videntes destaparem. Ambos portugueses, ambos a viver no estrangeiro (ela em Estocolmo ele na Alemanha); Não somos de entronar ninguém facilmente, mas os dois têm carreiras notáveis e serão os nossos grandes representantes internacionais no jazz, neste momento. Os dois instrumentos encaixam na perfeição (na verdade o trompete tem um som tão belo que parece talhado para duos com tudo o que não seja da mesma família de sopros). Um com um som cortante e metálico, o outro grave e de madeira.
Foi preciso Pedro Costa para que o encontro se desse e para os pudéssemos ouvir, em duo num concerto. Susana com um som lindíssimo no trompete e um fraseado claro, simples, parcimonioso; Carlos Bica tem uma enorme capacidade melódica e um som doce. Constrói uma ligação emocional forte com as canções e cada nota ressoa com profundidade. Tem várias cores, desde os graves profundos até os agudos límpidos. Bica e Susana Santos Silva, dão emoções positivas e alegres às notas que tocam: é a técnica virtuosística ao serviço da expressividade emocional.
O diálogo foi intenso. Um propunha uma ideia, o outro seguia-a e desenvolvia-a levando-a para um local diferente, para onde o primeiro proponente se deslocava. Noutras vezes eram dois caminhos separados: Bica assumia uma linha melódica no baixo e Susana flutuava com uma melodia. As canções apareciam do nada, daquelas que parece que sempre existiram. Conseguíamos seguir as ideias que iam surgindo e a sua evolução. Guloseima para o cérebro.
E a noite fechou com os MOVE, um power trio que já elogiámos em disco e ao vivo. Pegam na música deixado pelo primeiro disco dos Naked City de John Zorn ou dos X-Legged Sally e levam-na para outro lugar. Este trio pode tocar num festival de jazz mas pode igualmente tocar num festival de rock que queira sair um pouco do evidente e mesmo num de metal. Música forte, sempre a mudar de direção, intensa, potente.
Os One Small Step estão no cruzamento da música improvisada com o folclore norueguês e com as origens do jazz. Juntam um contrabaixo, um violino de Hardenger (criado no séc. XVII, na zona do fiorde de Hardenger, com uma sonoridade rústica) e uma sapateadora. Só esta instrumentação inusitada já seria suficiente para nos deixar entusiasmados. A música que ouvimos superou em muito o arrebite da curiosidade.
A sapateadora Janne Eraker começou des-sapateada, descalça sobre um tablado. Há beleza dos sons que produzia juntava-se a da gestualidade, num bailado musical em que corpo e som se influenciavam mutuamente.
A improvisação foi sempre interessante de seguir e normalmente assente em ritmos regulares literalmente feitos com os pés. Usou um grande número de ideias, desde raspar em areia, rebentar plástico com bolhas de ar, chapinhar em água (num pequeno tanque aplificado). Até sons típicos da misofonia eram musicais.
Vegar Vårdal começou discretamente no Hardenger, mas o seu concerto evoluiu para o canto, sussurrou, assobiou e dançou. Um corpo e um rosto que apareceram timidamente em palco por traz de um violino, revelaram-se livres e criativos numa ideia de música total, de improvisação com o instrumento, com o dia, com o palco, verdadeiramente com aquele momento único e irrepetível. Roger Arntzen no contrabaixo, contribuiu para dar uma cola àquela mistura invulgar. Os músicos noruegueses têm uma enorme capacidade para explorar soluções imprevistas e ao mesmo tempo um grande sentido musical.
A música dos One Small Step foi sempre bonita de ouvir e assente na melodia. São um grupo com um enorme potencial performativo que nos deixa curiosos para onde irão. Foi um privilégio ouvir este concerto que de algum modo marca um inauguração deste projeto com o lançamento do primeiro disco.
A promissora pianista suíça Margaux Oswald também vinha a Lisboa com um disco no regaço: depois da estreia a solo (Dysphotic Zone) que nos impressionou e mostrava uma abordagem no piano muito particular, surgiu “Magnetitte”, um duo com Jesper Zeuthen. Só que este era um segredo guardado em disco por lançar. Revelou-se no palco do auditório da Nova e foram " rosas, meu senhor!".
Havia a enorme curiosidade de saber como é que esta música tão individual, feita com grandes blocos graves ressonantes no piano, poderia funcionar a dois. Zeuthen tem uma forma de tocar lenta, com monodias muito bem definidas. A música do duo funcionou muito bem, realmente a dois, separadamente. São dois instrumentos com personalidades musicais muito distintas, um muito focado em linhas melódicas a uma voz, com um som metalino, e o outro em grandes unidades hamónicas, que constroem nuvens densas em movimento pelas quais o saxofone corta, como um avião que perfura impavidamente uma zona de grande turbulência. A junção sonora dos timbres evoca o som tradicional do jazz (piano e saxofone) mas o discurso é totalmente novo, funcionando surpreendentemente bem. Provou-se que Margaux não é uma solista e que o seu universo musical muito original pode conviver bem com outros. Um concerto forte e intenso com uma música muito particular.
A noite reservava-nos dois concertos, o primeiro dos quais foi descomunal. O trio Sophie Agnel, John Edwards e Steve Noble é muito provavelmente a melhor música para se poder perceber o encanto da “improvisação total”. Este género é muitas vezes criticado por ter desenvolvido uma linguagem própria (o não idiomático transformou-se no idioma) e por recorrer a formas simples e repetitivas (a ondulação osciloscópica de volumes, por exemplo). E esta crítica é verdadeira (como também podemos dizer que o jazz é muitas vezes uma mumificação de formas da primeira metade do século passado). Mas quando ouvimos este trio estamos a ouvir a elite. É uma final da Champions. Por isso é que por vezes outras audições geram algum desencanto (como quando vemos um jogo de uma distrital e não há um cruzamento para a área que chegue a um cabeceamento).
A enorme quantidade de recursos e sons que cada um dos músicos traz para o palco, a intensidade da interação, a inteligência na gestão das formas, o controle absoluto das dinâmicas – não só a de cada momento mas também da forma global da peça musical. É a perfeição a que todos os grupos deste género aspiram. Este trio é uma lição.
Ao longo da minha vida já vi inúmeros concertos de improvisação total e já participei nalguns. Os dedos das mãos chegam para contar as vezes que ouvi um a este nível.
Tudo perfeito, o diálogo feito à velocidade do som, com os três instrumentos a terem uma série de recursos originais (Sophie Agnel raspou as cordas do piano, emudeceu-as, palhetou-as, bateu, usou os pedais com precisão) e a construírem um diálogo a três sem picos extremos, só com ideias. Steve Noble é um mestre na bateria; da sua geração já existem muito poucos vivos a tocar a este nível, que possam trazer 50 anos de experiência para o palco. John Edwards abre também o contrabaixo a uma enormidade de sons e toca excecionalmente bem e com energia. Este é o trio de piano baixo e bateria tradicional do jazz, totalmente revisto e a criar património.
E para acabar o festival em festa a programação propunha já a começar tarde (23h) o trio de Luís Vicente com Tony Malaby. Vicente descobriu esta fórmula que funciona muito bem e tem insistido nela: trompete e saxofone e secção rítmica. Na bateria estava Pedro Melo Alves e no contrabaixo Gonçalo Almeida. Juntou-se o saxofone tenor do Arizona (mas que é mais um dos muitos americanos que trocou a excêntrica guerra civil Americana pela segurança e paz portuguesas e veio experimentar morar cá).
Foi de facto festivo, com as melodias alegres de Vicente a servirem de argumento para os solos dos dois sopros. A música de Vicente parece sempre uma celebração, lembrando neste sentido a de Albert Ayler, tocada com vontade e garra e assente nos metais. Nesta formação o baixo e a bateria assumiram um papel igualmente importante, estando todos os instrumentos na frente e com intensidade. Foi uma maneira excelente de fechar a última noite de Causa Efeito.
Um festival não é – ou não deve ser apenas - uma sequência de concertos que se compra em pacote e alinha em datas. O Causa Efeito é um acontecimento à volta do jazz. Editou uma revista com textos de reflexão de vários autores, promoveu um debate de investigadores e musicólogos, um concerto pedagógico para famílias, o convívio com os músicos depois dos concertos acolitado por um pequeno mas simpático bar que agilizava as bebidas. E é talvez o único festival em Portugal que propõe formações inéditas (Como a de Susana Santos Silva com Carlos Bica ou a de Hugo Carvalhais com João Barradas), estreia discos e formações (Faustino, Lencastre, Alcorn; Bica, Barradas, Dj Illvive e Erdmann; Margaux Oswald e Jesper Zeuthen).
Lisboa é talvez a única capital europeia que não tem um grande festival de jazz da cidade e depende das instituições como a Gulbenkian – e agora a NOVA – para poder ter um festival de jazz de dimensão europeia. Assim, porque o Causa Efeito faz muita falta, esperemos que tenha vindo para ficar. Este é um festival que uma instituição de ensino superior se pode orgulhar de apresentar: música provocante, inquietação, surpresa e inovação. O Causa Efeito foi feito para celebrar os 50 anos da Universidade Nova, mas é muito apropriado para comemorar os 51 e seguintes.
É um caso raro na programação (muita presença portuguesa de alta qualidade e muitas propostas inéditas e estreias mundiais), um exemplo de enorme qualidade e de aproximação de uma comunidade que vai dos investigadores aos curiosos. Acende pessoas por dentro. É isso que se espera de uma universidade.